segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Contar é a arte da relação - Cristina Taquelím - Palavras Andarilhas

Cristina Taquelim dedica a sua actividade profissional à promoção da leitura e à arte de contar. Co-organizadora do conhecido encontro internacional «Palavras Andarilhas» – que este ano o Município de Beja e a sua Biblioteca promoverão, uma vez mais, entre os dias 25 e 28 de Agosto –, é também autora de livros para a infância. Tudo boas razões para uma conversa.



Continua a dar-se, quase por inteiro, à promoção da leitura no concelho de Beja, como uma espécie de braço-armado-de-livros da Biblioteca, que percorre escolas, instituições, lugares diversos. Ultimamente o seu trabalho alarga-se aos mais idosos. É possível pô-los a ler, ou pelo menos a manterem-se activos e a viverem num ambiente de literacia? Qual é o seu propósito principal, nesse âmbito?
A minha vida profissional está profundamente marcada pelo trabalho que desenvolvo desde 1988, no concelho de Beja, enquanto técnica da Divisão de Bibliotecas e Museus do Município.
Tive o privilégio de integrar desde a primeira hora a equipa do Figueira Mestre e contribuir para a estratégia que desde sempre norteou o nosso trabalho: «Uma biblioteca ao serviço do leitor». A promoção da leitura sempre foi a minha área de intervenção, dentro da organização, procurando caminhos e sentidos, coordenando uma pequena equipa que se foi qualificando para cumprir aquele que creio ser o grande desígnio das bibliotecas: «Criar e alimentar comunidades» (não é minha a frase, mas sei que a ouvi algures).
Em 2009, o Município lançou um novo programa de Leitura em Meio Rural que permitiu melhorar a resposta às comunidades rurais e integrar alguns projectos junto de novos públicos. Ampliando trabalho junto de grupos em situação de isolamento e exclusão social, apostando numa intervenção regular e continuada. É esse o contexto do projecto «Conversas Andarilhas» que desde 2009 se desenvolve junto de grupos de idosos e que ganha novo fôlego, a partir de 2012, graças a um projecto apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Esta linha de trabalho desenvolve-se na base de encontros regulares com grupos de idosos, em que se conversa em torno de livros, contos, mas sobretudo histórias de vida. São momentos importantes de quebra de isolamento, de estimulação cognitiva, de valorização da memória e identidade destes homens e mulheres. Tentamos trabalhar cruzando o oral e o impresso, os textos da cultura popular com os da esfera literária, as memórias do vivido com as memórias do ficcionado. As competências leitoras de cada grupo, o seu grau de autonomia, a história de cada um dos seus elementos são os pontos de partida. A eles junta-se a capacidade relacional de cada dinamizador. Estamos a falar de um trabalho de relação que assume uma natureza ora mais performativa, ora mais participada, mas sempre centrado na palavra, na imagem, no livro. Temos quem leia romances, quem prefira o Almeida Garrett ao Mário de Carvalho, quem leia almanaques, bíblias, páginas de poesia dos jornais locais, quem só goste de biografias e também quem não leia nada e apenas venha para estar à conversa.
Conversamos muito sobre o que sabemos, pensamos e sentimos e ficamos surpreendidos com a maneira como os escritores falam do mundo: como o Manuel da Fonseca contou, em Seara de Vento, a história do Cantinho da Ribeira, como a Isabel Minhós Martins fala do Alqueva no livro O que vês dessa janela, como o António Mota fala desses Outros Tempos ou dos dramas de A Casa das Bengalas. Partilham-se memórias em torno de romances, adivinhas, adágios, trava-línguas escutados na infância. Identificamo-nos com as descrições de Eduardo Olímpio sobre os bailes e funções na serra. Lemos poemas e conversamos sobre as letras de fados e canções. Há quem só venha cantar. Há quem apenas siga a sessão com os olhos por incapacidade motora de comunicar. Cantamos muito para espantar tristezas e medos.
A Biblioteca de Beja, com todo o seu savoir faire, Cristina, prepara-se para, uma vez mais, pôr de pé o encontro «Palavras Andarilhas» – que se tornou uma espécie de imagem da marca da cidade e o principal pólo português da arte de contar e ouvir contar. Quer partilhar connosco algumas notícias frescas?
Um savoir faire, como sabem, feito de muitas cumplicidades e da permanente procura de sentido para este projecto. Ele reflecte o trabalho da biblioteca e sinaliza o caminho para os anos seguintes. Contar e ouvir contar constitui o centro das Andarilhas, mas elas sublinham a importância do trabalho com a palavra nas suas múltiplas dimensões, oferecendo-se como um espaço de aprendizagem e troca de experiências de muitos mediadores de leitura que trabalham nas redes de leitura portuguesas. Do programa deste ano, que se desenvolve entre 25 e 28 de Agosto, destacaria, como temas de fundo, as questões do maravilhoso na tradição oral, a mediação da leitura na infância e juventude, sublinhando alguns géneros menos discutidos e que parecem constituir-se como boas ferramentas para os mediadores: poesia e micro-ficção. As conferências, tertúlias e oficinas cruzam-se com um novo projecto, Festival de Contos do Mundo, que contará com a presença de um bom painel de narradores nacionais e estrangeiros. O Jardim Público será nestes dias o coração da cidade dos contos, mas a oferta de actividades expande-se pelo centro histórico da cidade e freguesias rurais.

Qual continua a ser para si o principal sentido do contar e ouvir contar?
Independentemente da idade, do contexto, das competências e saberes, contar é a arte da relação. Posta ao serviço de uma estratégia de promoção de leitura, ela serve o desenvolvimento da linguagem: veja-se o papel das adivinhas no desenvolvimento de processos de antecipação leitora, das lengalengas no desenvolvimento da consciência fonológica, dos contos cumulativos e outros, na construção de esquemas narrativos. Contar e ouvir contar constitui um espaço e um tempo de reflexão sobre as metáforas do mundo e da vida, mapeando valores, emoções e afectos. Ouvir contar apoia o desenvolvimento da escuta e da memória, sem as quais não existe aprendizagem, bem como a organização de enunciados orais, de mecanismos expressivos.
Mas contar e ouvir contar também são apenas lazer, fruição, colo e embalo.

É por causa desse mesmo sentido que passou à escrita, com livros sobretudo para os mais novos, como Malaquias (RHJ, 2007), Na minha casa somos sete (Pé de Página Editores, 2009), Uma casa na Lua (Paulinas Editora 2011), Corrupio (Editora Lê, 2013)?
Nasci numa casa de palavras e sempre escrevi muito e irregularmente, para a gaveta e mais tarde por necessidades de profissão. As minhas discretas incursões no mundo da edição surgiram por curiosidade e incentivada por aqueles que me amam. Fracos motivos para editar, como vêem. Suponho que o facto de ter uma forte relação com a oralidade e com a literatura para a infância também tenha influenciado. Em quase tudo o que publiquei está presente aquilo que eu sou, aquilo que penso, e fi-lo com verdade. Às vezes os textos são apenas brincadeiras de dizer, encontro-lhes hoje muitos defeitos e outras tantas virtudes, algumas até ao revés do cânone literário. As histórias rimadas da minha avó são uma voz de fundo de quase todos os textos. A minha história, também a leitora, fez o resto.

Corrupio, o mais recente, editado no Brasil, o que é? Diga-nos nas suas palavras.
É um pequeno álbum, ilustrado pela Elisabeth Teixeira e publicado pela editora brasileira Lê, que contou com o apoio da DGALB. Uma história sobre o desejo e onde ele nos leva. Uma metáfora sobre a descoberta da vida, sobre o amor. Está «prescrito» – ironizo – para pré-leitores, mas a leitura em voz alta apenas do texto pode oferecer uma recepção interessante junto de outros públicos. 

Em sua opinião, este mundo perigoso, socialmente injusto e desigual, em que estamos a viver, reclama o contar e o ouvir contar?
O mundo nunca foi justo e está cada vez pior! – dizia no outro dia, do alto dos seus 90 anos, uma leitora de biografias. Os contos dão-lhe razão. Veja-se os textos do património imaterial, 

Porque as crianças aprendem mais com contos de fantasia do que com histórias realistas

Artigo publicado originalmente no Aeon Ideias e traduzido pelo Portal Aprendiz via Creative Commons. Deena Skolnick Weisberg é pesquisadora sênior do departamento de psicologia da Universidade da Pensilvânia. Seus campos de pesquisa incluem o desenvolvimento de uma cognição imaginativa, o papel que a imaginação joga no aprendizado, e pensamento científico e racional em crianças e adultos.
As crianças têm muito o que aprender. Pode se dizer que este é o propósito da infância: garantir às crianças um tempo protegido para que elas possam se concentrar em aprender como se comunicar, como o mundo ao seu redor funciona, que valores sua cultura considera importante e por aí vai. Dada a quantidade massiva de informação que as crianças precisam absorver, pareceria recomendado que eles passassem o máximo possível deste tempo engajadas em estudar seriamente as questões e problemas do mundo.
Ainda assim, qualquer um que já tenha passado tempo ao redor de crianças sabe que elas dificilmente têm a aparência de acadêmicos sérios e focados. Ao invés, as crianças passam muito do seu tempo cantando canções, correndo por aí, fazendo bagunça – isto é, brincando. Para além de participarem da grande alegria de descobrir como a estrutura do real funciona através de suas brincadeiras exploratórias, as crianças (como muitos adultos) também tendem a ser profundamente atraídas por jogos e histórias irreais. Elas fingem ter superpoderes ou habilidades mágicas e imaginam interações com seres impossíveis, como sereias e dragões.
Por muito tempo, tanto pais como pesquisadores supuseram que esses “voos de fantasia” eram, na melhor das hipóteses, inofensivos episódios de diversão – talvez necessários para a descontração de quando em quando, mas sem qualquer propósito real. Na pior das hipóteses, alguns defendiam que tais momentos eram distrações perigosas da importante tarefa de entender o mundo real, ou manifestações de uma confusão pouco saudável sobre a barreira entre realidade e ficção. Mas agora, novos trabalhos no campo da ciência do desenvolvimento mostram que não apenas as crianças são plenamente capazes de separar realidade e ficção, mas também que a atração por situações fantásticas pode na verdade ser bastante útil para o aprendizado.
Trabalhos mostram que fantasia pode ser instrumental para aquisição de conhecimento.

Eu me aproximei dessa perspectiva após testar diversas maneiras de ensinar novas palavras ao vocabulário de crianças da educação infantil em programas do Head Start*, na esperança de combater o déficit de linguagem que existe entre crianças de pré-escola de contextos socio-econômicos altos e baixos. Para fazer meu estudo, minha equipe apresentou novas palavras de vocabulário ao longo de uma atividade de leitura compartilhada, e depois reforçou os significados dessas palavras em sessões de brincadeiras tuteladas por adultos.
A intervenção foi bem-sucedida, e o entendimento das crianças das novas palavras melhorou – o que foi comprovado por testes feitos antes e depois da experiência. Mas o que foi mais interessante para nós foi a diferença entre os dois grupos de crianças deste estudo: aqueles cujas histórias descreviam temas realistas, como cozinhar, e aqueles cujas histórias descreviam temas fantásticos, como dragões. No começo do estudo, publicado em 2015 na revista Cognitive Development, as crianças sabiam menos sobre as palavras dos livros fantásticos, talvez porque tais palavras eram mais desafiadoras. Mas vimos que o conhecimento lexical das crianças aumentou ao longo da intervenção e, nos pós-testes, elas sabiam tanto destas palavras quanto daquelas contidas nas histórias realísticas. Isso é, as crianças ganharam mais conhecimento das histórias fantásticas do que das realísticas.
*Head Start é um programa do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos que oferece educação, saúde e nutrição em serviços abrangentes que envolvem crianças de baixa renda e suas famílias.
Essa descoberta é surpreendente uma vez que confronta tudo que sabemos sobre aprendizado e transferência. Um grande montante da literatura na psicologia mostrou que quanto mais próximo o contexto de aprendizagem está do contexto onde a informação será usada, melhor. Isso sugere fortemente que livros realistas deveriam ajudar as crianças a aprender os significados das palavras melhor e reportá-los mais precisamente nos pós-testes. Mas nosso estudo mostrou exatamente o oposto: livros de fantasia, aqueles que eram menos próximos da realidade, permitiram que as crianças aprendessem melhor.
Livros de fantasia, aqueles que eram menos próximos da realidade, permitiram que as crianças aprendessem melhor.
Em trabalhos mais recentes, nosso laboratório vem replicando este efeito. Um estudo em andamento está descobrindo que as crianças aprendem novos fatos sobre animais melhor a partir de histórias fantásticas do que das realísticas. Outros pesquisadores, usando uma variedade de métodos e medidas, mostraram que representações de eventos aparentemente impossíveis podem ajudar as crianças a aprenderem. Por exemplo, crianças são mais preparadas para aceitar novas informações quando elas são surpreendidas – portanto, quando elas têm quebradas suas suposições sobre o mundo físico. 
O que pode estar acontecendo? Talvez as crianças são mais engajadas e atentas quando elas veem acontecimentos que desafiam seu entendimento de como o real funciona. Afinal, os acontecimentos nessas histórias fantásticas não são coisas que as crianças veem todos os dias. Então talvez elas prestem mais atenção, o que leva a mais aprendizado.
Uma possibilidade diferente – e mais rica – é que há algo sobre contextos fantásticos que é particularmente útil ao aprendizado. De tal perspectiva, a ficção fantástica pode fazer algo mais do que capturar o interesse das crianças melhor que a ficção realista. Em vez disso, a imersão em cenários onde elas precisam pensar sobre situações impossíveis podem engajar processamentos mais profundos, precisamente porque elas não podem tratar tais cenários como fariam com qualquer outra situação que encontram na realidade.
Elas precisam considerar cada evento com um olhar novo, perguntando se ele cabe no mundo da história e se ele se encaixa nas leis da realidade. Essa necessidade constante de avaliar a história pode gerar circunstâncias bastante próprias para o aprendizado.
Trabalhos futuros irão investigar todas essas possibilidades. Mas, por hora, é importante notar que nossas descobertas podem ter profundas implicações na educação. Mesmo que seja “somente” o fato de que crianças aprendem melhor em contextos fantásticos, porque tais contextos as ajudam a prestar mais atenção, nós podemos usar este fato para fazer melhores materiais didáticos que irão beneficiar todas as crianças.
(A ilustração principal deste artigo foi gentilmente cedida por Janaina Tokitaka e faz parte do livro “O Mercado dos Goblins”, de Christina Rossetti, publicado pela Companhia das Letras)

sábado, 28 de janeiro de 2017

Acontece lá no Museu da Pessoa: Narradores de vida!!!!

Inscrições abertas para o curso "Narradores de Vida"



O Museu da Pessoa oferece, a partir de 11 de fevereiro, um curso “Narradores de vida”. A ideia é trabalhar 
com temas da estética da cena contemporânea por meio da figura do contador de histórias, apresentando 
elementos para a criação de solos artísticos (materiais cênicos, palavra performativa, corpo e voz).
O curso tem como objetivo a criação literária e construção cênica elaboradas a partir da memória pessoal
 (relatos autobiográficos). Estudo dos conceitos de mito e rito dentro da perspectiva do Mito do Herói
 (Joseph Campbell), e construção poética do Mito Pessoal.  
Comandadas por uma dupla de experientes, Giselle Rocha e Sandra Lessa, o curso propõe reflexões
 sobre a ficção e a realidade contidas dentro da narrativa da memória. Apresenta modos de transformar 
lembranças de momentos da vida em duas linguagens artísticas: escritas literárias e narrações
 cênicas. Constrói uma integração  com a escrita e a oralidade, evidenciando as particularidades 
de cada linguagem focando na integração dessas composições, buscando gerar um ‘recriação da memória’ 
por meio da arte.  
Os interessados em se inscrever no curso, podem mandar um email para admin@museudapessoa.net. 

Serviço
Participantes: Até 30 pessoas
Local: Instituto Museu da Pessoa
Rua Natingui, 1100, Vila Madalena
Telefone: 2144-7150
Datas: 11/02, 18/02, 04/03, 11/03, 18/03 e 25/03. No primeiro dia, o curso acontecerá de
 09h00 às 16h00 e nos dias seguintes de 09h00 às 13h00.


sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Brincar sem brinquedo: qual é a importância para a criança? - Catraquinha

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As maiores brincadeiras estão dentro da cabeça da criança, ou seja, surgem através da imaginação. Nem sempre é preciso de um brinquedo para poder brincar e se divertir. E, na verdade, é bom que a criança não brinque mesmo sempre somente com brinquedos prontos para que ela aprenda a usar sua criatividade e estimule a capacidade de construir.
Um simples graveto pode se transformar em uma varinha mágica, ou em um foguete, ou quem sabe em um bichinho que anda pelo mato. Vale tudo o que a imaginação da criança permitir e saber criar suas próprias brincadeiras sem brinquedos é importante para o desenvolvimento infantil.
Folha de coqueiro vira barquinho nas mãos de menino.
Créditos: Território do Brincar
Folha de coqueiro vira barquinho nas mãos de menino.
O exercício de transformar objetos e situações em brincadeiras é muito importante  na vida de uma criança. A frase “dar asas à imaginação” sempre foi muito coerente e hoje, com tantos brinquedos à disposição dos pequenos, é preciso ser estimulada e praticada de todas as maneiras.
Em entrevista para Carta Educação, Tatiana Weberman, responsável pelo SlowKids – movimento que propõe a desaceleração para a infância – diz que é preciso não deixar disponível às crianças tantos brinquedos com funções especificas e nem planejar tantas atividades para elas. “Deixar menos opções, muitas vezes, é abrir uma porta para a criatividade e uma vastidão de possibilidades”, afirma.
Na mesma entrevista, Graziela Iacooca, criadora da plataforma de brincadeiras Massacuca, conta que, ao contrário de muitos adultos, as crianças não precisam de instruções para brincar com objetos do cotidiano. “A nossa proposta é tirar o lúdico de objetos normais, o que a criança sabe fazer. Estamos ensinando os adultos a disponibilizar isso para os pequenos”, explica.
Uma das propostas oferecidas por Graziela é fazer um baú de tesouros com uma caixa, balde ou sacola e diferentes objetos da casa – que podem ser utensílios da cozinha em tamanhos e materiais diferentes – para, a partir daí, a criança criar várias histórias e descobertas. Outra sugestão é congelar, mergulhar, ornamentar, enterrar ou fazer qualquer outra coisa que a criatividade permitir com esses mesmos objetos. O Catraquinha já publicou ideias como essas aqui e aqui.
O documentário Território do Brincar aborda o brincar livre a partir do ponto de vista e pesquisa da cineasta Renata Meirelles. Para a produção, ela viajou com o marido e os dois filhos (agora com 6 e 8 anos) por 9 estados brasileiros, se estabelecendo em 14 comunidades diferentes, para observar e estudar as brincadeiras espontâneas infantis. Os destinos escolhidos foram locais com pouca estrutura como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, ou o Recôncavo Baiano.
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Créditos: Território do Brincar
Meninas brincam de amarelinha de "dias da semana", desenhada no chão.
Também em entrevista para o Carta Educação, Renata diz que mesmo os brinquedos mais comuns, como um carrinho ou barquinho, quando são feitos pela própria criança contam uma história e geram um vínculo diferente com ela. A cineasta conta que se impressionou com a diversidade de composições de brinquedos e brincadeiras criadas pelas crianças dos locais por onde passou.
Para ela, uma das lições que o projeto Território do Brincar passa é que as crianças precisam da ausência de brinquedos prontos para que possam acessar os próprios desejos, vontades e interesses. “Elas conseguem concretizar na prática seus sonhos com sua imaginação”, diz.
https://catraquinha.catracalivre.com.br/geral/manual-de-brincadeiras/indicacao/brincar-sem-brinquedo/

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Censura na historinha... morte, violência, escatologia e sexo.

Qual o conteúdo dos livros infantis?
Linda reportagem de Giuliana Bergamo, direção de arte Solenn Robic e ilustrações de Giovana Medeiros com os nossos mestres Kelly Orasi e Ilan Brenman. A matéria completa está aqui:http://tab.uol.com.br/contos-infantis/#censura-na-historinha (tabuol@uol.com.br), entrem no link que está repleto de dicas e ilustrações só M A R A V I L H O S A S!!!!
O politicamente correto está cada vez mais empenhado em minimizar, para crianças, os problemas da vida. Mas um pouquinho de um mundo real nesses primeiros anos pode ajudar no diálogo de pais e professores com os leitores-mirins.
Esta reportagem nasceu na seção infantil de uma livraria paulistana. Enquanto meus filhos – uma menina prestes a completar 6 anos e um menino de 3 anos – ocupavam-se com títulos escolhidos aleatoriamente, pedi ao vendedor o lançamento da escritora italiana Elena Ferrante para crianças, “Uma Noite na Praia”. Viciada em seus romances para adultos, eu estava esperançosa de poder compartilhar com os pequenos minha nova curtição.
Antes de me entregar o livro, o rapaz uniformizado, com um semblante sério, quis saber: "Mas qual a idade da criança?" Confesso que fiquei em dúvida se respondia 5 ou 35 e acabei devolvendo com uma pergunta: "Por quê?". E então ele me advertiu sobre o tema da história. Segundo o moço, a narrativa é muito densa, com trechos tensos, que poderiam causar medo e tristeza ao leitor-mirim. "É preciso tomar cuidado", disse. Agradeci o aviso e fui conferir do que se tratava.
Uma “Noite na Praia” é narrado por Celina, uma boneca esquecida na areia por sua dona, a menina Mati, que acaba de ganhar um gatinho de estimação. Além do sentimento de abandono, ela enfrenta o medo do salva-vidas noturno, da fogueira onde são incinerados outros objetos deixados pelos banhistas na praia (alguns brinquedos inclusive), da tempestade e do mar. O texto é belíssimo, mas, de fato, trata-se de uma história com passagens que suscitam o medo, a tristeza e a rejeição, como esta:
"O Grande Garfo tem dentes de ferro assustadores, afiados pelo uso.
Ele morde ferozmente a areia enquanto avança.
Estou com medo. Ele vai me machucar, vai me ferir.
Lá vem ele.
Acabo entre os dentes dele junto a pedrinhas, conchas, caroços de ameixa e de pêssego.
Fico um pouco amassada, mas estou inteira.
O Salva-Vidas Malvado continua a cantar, com uma voz que dói o coração:
Arranque o nariz
Lá no chafariz
Esvazie o gogó
Você estará só"
Pais e mães não gostariam de expor seus filhos a esse sentimento, certo? Ainda com o livro em mãos, fiz a reflexão. O vendedor estava correto em me alertar? Seria este um texto apropriado para crianças? Que mal eu causaria às crianças lendo uma história que não é feliz do começo ao fim? Será que a superproteção da atual geração já tem repercussão até na literatura?
Para resolver estas dúvidas, recorri primeiro ao psicólogo e escritor Ilan Brenman, estudioso do assunto. Ilan já publicou mais de 70 títulos e ultrapassou a marca dos 2 milhões de livros infantis vendidos. A pesquisa acadêmica do autor também é bastante rica. Sua tese de doutorado em Educação, pela USP (Universidade de São Paulo), virou um livro, “A Condenação de Emília – O Politicamente Correto na Literatura Infantil”. Já na abertura, ele dá o alerta sobre a superproteção: "A sociedade e, mais especialmente, a educação e a literatura estão cada vez mais preocupados em minimizar, para as crianças, os efeitos colaterais da vida, fornecendo-lhes doses diárias daquilo que se convencionou chamar de 'politicamente correto'".
 Na seção infantil de outra livraria, encontrei a engenheira Karen Arcon. Sentada no chão com duas crianças, o seu bebê de 5 meses e o sobrinho de 2 anos, ela disse ler para a dupla desde que nasceram. O maior já escolhe suas histórias preferidas. "Sempre de bicho", afirmou a tia, que prefere não ler narrativas com violência ou morte para o menino. Nesse momento, a babá, Amanda Teixeira dos Santos, pediu a palavra: "Mas já lemos a versão de Chapeuzinho Vermelho em que o caçador abre a barriga do lobo e ele não ligou". Ali também abordei a advogada paranaense Gisela Teixeira de Paiva. Mãe de duas meninas, de 11 e 7 anos, contou-me que ela e o marido têm o hábito de ler para as filhas antes de dormir. "Lemos livros da nossa infância, como a série Vagalume, que tem narrativas de suspense. Elas adoram", disse. Para Amanda, mais importante do que o conteúdo é a forma como os pais conduzem a "contação" e discutem possíveis dúvidas. 
Nem todos os pais pensam assim. Brenman relata diversos episódios em que foi criticado por pais e educadores devido ao conteúdo de seus livros, que é variadíssimo e inclui alguns tabus, como morte, violência e escatologia. Certa vez, depois de publicar uma coletânea de histórias da tradição oral de diversos povos, o autor recebeu um e-mail em que uma leitora o questionava: "O que é isso? Tropa de Elite infantil?". Em outra ocasião, foi interrogado pela diretora de uma escola por ter dito a palavra "bunda" durante uma roda de histórias. Justo ele, que tem entre seus livros mais famosos o “Até as Princesas Soltam Pum”, em que um pai abre um livro secreto e conta à filha a verdade sobre a intimidade das nobres personagens. Na narrativa, Branca de Neve, por exemplo, não foi envenenada. Desmaiou por causa de um gás fedorento.
 O escritor não é o único alvo dos adultos superproterores. Professores vivem situações parecidas em seu dia a dia. A educadora Suely Bloch, que tem 18 anos de experiência em sala de aula e hoje é proprietária de um espaço para atividades infantis, o Brincando no Pé, relata ter sido questionada diversas vezes pelos pais. "Sempre acontece quando lemos as versões originais dos contos de fada. Os adultos ficam horrorizados com os trechos que falam de morte, violência ou sexualidade", afirma. Nessas ocasiões, Suely costuma mostrar às famílias que, ao contrário do que se imagina, os pequenos lidam muito bem com esses assuntos. E, quando algo em especial chama atenção, trata-se de uma boa oportunidade para abrir o diálogo.
Para tirar a teima, o TAB fez um teste. Convidamos um grupo de 16 crianças, alunos da escola Terra Brasil, em Atibaia, para ouvir a versão dos alemães Jacob e Wilhelm Grimm, os Irmãos Grimm, do clássico “Cinderela”. Quem conduziu a brincadeira foi a contadora de histórias Kelly Orasi. Em uma tarde de novembro passado, sentados em roda, os meninos e as meninas ouviram todos os trechos omitidos das versões contemporâneas da mesma história. Na antiga, por exemplo, a mãe de Cinderela despede-se da menina em seu leito de morte. Em uma outra passagem, a madrasta manda suas filhas cortarem os pés para que caibam no sapatinho que não é delas. O príncipe percebe a trapaça justamente porque vê um rastro de sangue. Aparentemente, nada causou choque às crianças.
Kelly, que há quase duas décadas conta histórias para crianças e é autora de um livro com passagens tristíssimas também, “A História que Atravessou o Oceano”, confessa ter vivido ela mesma o dilema da superproteção. Entre seu repertório de narrativas, está a fábula de Jean de La Fontaine (1621–1695) “O Peixinho e o Pescador”. Trata-se do destino de um peixe muito simpático, carismático e cheio de planos que acaba na frigideira de um pescador malvado. Receosa de como ficariam os ouvintes, a contadora resolveu propor a eles que pensassem em um final mais feliz para o personagem. "Ao contrário do que eu imaginava, em nenhuma das apresentações as crianças se incomodaram ou quiseram mudar o desfecho triste", relata.
Para Ilan Brenman, ao protegermos nossas crianças além da conta, corremos o risco de criar uma geração de adultos emocionalmente despreparados, hipersensíveis e incapazes de lidar com sentimentos e situações reais. "O politicamente correto é a negação da própria vida", diz. Afinal, é justamente ao brincar, ouvir e contar histórias e fantasiar, atividades típicas da infância, que meninos e meninas descobrem o mundo e aprendem a viver em sociedade. Quanto mais ricas forem as experiências nesta fase da vida, mais preparado para encarar a maturidade estará o indivíduo.
"Por meio da fantasia, a criança se identifica e tem a chance de olhar para dentro e entender algo que sente, mesmo quando violento", afirma Suzana Sanson, fundadora da Brinque-Book, uma das mais importantes editoras de livros infantis do Brasil. "O que atrapalha é fazer de conta que o violento, por exemplo, não existe e ter uma produção editorial focada em mensagens e lições de moral." Ou seja, a literatura dá subsídios para que a criança elabore as emoções e crie estratégias para lidar com as agruras do mundo real em que vive.  
"Contraditoriamente, a mesma geração de adultos que tenta proteger os filhos das histórias de ficção muito violentas acaba expondo-os demais à realidade cruel", diz a administradora-executiva da Fundação Abrinq, Heloísa Helena de Oliveira. Meninos e meninas de todas as idades assistem a novelas e à cobertura policial dos telejornais com pouco ou nenhum limite. Para piorar, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que obriga os veículos de radiodifusão a transmitirem programas de acordo com a classificação indicativa de faixa etária. Na prática, isso significa que a TV – inclusive os canais abertos – pode exibir um filme com cenas de sexo e assassinato ao meio dia, por exemplo.
E, aqui, surge uma dúvida importante: ora, se não há problema em ler um conto de fada com cenas de morte e pitadas de sexualidade, por que então evitar que as crianças entrem em contato com estes temas na televisão? Aí é necessário fazer algumas distinções. "Os temas não têm restrição de idade, mas a forma tem", diz Heloísa Helena. Quando lê um livro ou ouve uma história contada, a criança está em uma situação apropriada para viver os sentimentos como fantasia. Já quando é exposta à notícia de uma chacina, por exemplo, ou ao relato de um vizinho que diz ter sido assaltado, ela sabe que aquilo é real e pode não ter preparo para encarar o fato.
Sobre a televisão (ou o conteúdo audiovisual consumido via tablets, computadores e celulares), é preciso fazer ainda um alerta. Embora assistir a filmes e programas infantis também sejam consideradas atividades lúdicas, os especialistas concordam que é necessário controlar o tempo que os pequenos passam diante das telas. Segundo as orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria, até os 2 anos, o ideal é evitar ao máximo. Entre 2 e 5 anos, o limite é 60 minutos por dia de exposição. E, a partir disso, os pequenos precisam de supervisão dos pais e bom senso. Diante da tela, a experiência sensorial é reduzida porque, no mínimo, a imagem e o som já estão prontos e não serão criados, imaginados na cabeça do espectador.
 Já para a leitura, não há limite. Afinal, como escreveu o escritor peruano Mario Vargas Llosa, a literatura é "um dos mais enriquecedores afazeres do espírito". “A ficção nos completa”. Em seu livro “A Verdade das Mentiras”, o romancista afirma ainda que ela é "uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso mesmo, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação como disciplina básica".
Quanto ao livro que deu origem a esta reportagem, li para meus filhos noites atrás ao colocá-los para dormir. Atentos, os dois prestaram atenção às 38 páginas preenchidas com o texto de Elena Ferrante e as belas porém tétricas ilustrações de Mara Cerri. Percebi que, nas passagens tensas, minha menina se aproximava mais de mim e encolhia seu corpinho. Ao final da leitura, o pequeno virou para o lado e pegou no sono, tranquilo. Já a mais velha disse: "Mãe, eu a-do-rei!".
 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O CORDEL É UM DOS PILARES DA NOSSA LITERATURA POR IVANI CARDOSO


Pensem em uma biblioteca ambulante. Pensaram?? Pois é ele O CARA, meu querido Marco Haurélio, o homem CONTEÚDO em pessoa. Leiam!!

A Escola Municipal Doutor José Novais tem a maior nota entre as escolas municipais e estaduais de João Pessoa e está além da média das escolas privadas da capital paraibana (7,3 no Ideb 2015, quando a meta era 6,0). Entre suas ferramentas na sala de aula está o uso da literatura regional, típica do Nordeste, para contar a historia de autores famosos. Com essa e outras experiências na educação, o cordel vem ganhando força e tem muitas influências e confluências, passando pelas tradições populares do Brasil às sagas mitológicas de várias origens. O escritor, poeta popular, editor, pesquisador e folclorista Marco Haurélio é apaixonado pelo gênero e diz que um bom cordel não é apenas um texto bem escrito, mas deve ser calçado também por subtextos e informações, além de estar conectado ao inconsciente coletivo. Ele tem vários títulos editados, como Presepadas de Chicó e Astúcias de João GriloHistória da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados (Luzeiro). É autor, também, dos livros infantis A Lenda do Saci-Pererê e Traquinagens de João Grilo (Paulus); O Príncipe que Via defeito em Tudo (Acatu). No campo da pesquisa em poesia popular, escreveu Breve História da Literatura de Cordel (Ed. Claridade), que integra a coleção Saber de Tudo, e Literatura de Cordel – do sertão à sala de aula (Paulus). Faz palestras e realiza oficinas sobre Cordel e Folclore em vários estados brasileiros e foi consultor da telenovela Velho Chico (Rede Globo). Quando o tema é educação, ele ressalta que, nas escolas, o grande erro é trabalhar o folclore apenas no mês de agosto. Ou imaginar que o folclore envolva apenas crenças e costumes ligados ao universo rural. “Folclore não é algo exterior ao homem, portanto. É a vida em sua plenitude”, afirma.
Confira a íntegra da entrevista:
De onde surgiu a paixão pelo cordel?
Vem desde a minha infância, na Ponta da Serra, sertão da Bahia, onde nasci. A casa da minha avó, Luzia Josefina, ficava ao lado da casa de meu pai. E, lá, numa gaveta de um velho armário, ela guardava centenas de folhetos de cordel, incluindo vários clássicos. Ela também sabia de cor muitos romances velhos (romances ibéricos), contos populares e ABCs (composições poéticas cujas estrofes sempre começam com uma letra do alfabeto, em sequência). Aos sete anos, eu já sabia de cor alguns cordéis, a exemplo da História de Juvenal e o Dragão, de Leandro Gomes de Barros.
De onde vem a inspiração?
São muitas as influências e confluências. Das tradições populares do Brasil às sagas mitológicas de variada origem. Tanto que o meu novo projeto, na verdade um romance de cordel escrito ao longo de mais de 20 anos, chama-se O Cavaleiro de Prata e traz referências das mitologias nórdica e céltica. Também sou pesquisador das tradições populares, notadamente dos contos tradicionais, que se vinculam ao mito e ao rito, impelindo à pesquisa para efeito de comparação. Um bom cordel, hoje, não é apenas um texto bem escrito, mas deve ser calçado também por subtextos e informações, além de estar conectado ao inconsciente coletivo.
Qual a importância do cordel para a literatura?
Cordel é literatura, mas, como as pessoas gostam de segmentar e, também, de marginalizar, durante muito tempo foi reduzido à condição de fonte inspiradora para artistas de outras searas. Seu valor, para as elites culturais, se resumia a esta função subalterna. Hoje, apesar de ainda prevalecer uma visão elitista, a nova geração tem conquistado muitos espaços. Alguns poetas e estudiosos da poesia brasileira, a exemplo de Alexei Bueno, consideram muitos autores de cordel mais talentosos que os pretensos poetas cultos. O cordel é um dos pilares de nossa literatura e, sem ele, o Cinema Novo não existiria. O teatro popular de Ariano Suassuna deve a ele sua existência e obras seminais como Macunaíma, de Mário de Andrade, sem a interface com a poesia popular, perderia muito de sua graça.
É um gênero reconhecido em eventos e feiras literárias?
Sim. Eu, por exemplo, tenho participado de muitos eventos, e a minha condição de autor e pesquisador do cordel é a principal razão para os convites que recebo. Em várias feiras e bienais, como a do Ceará, tem espaço fixo e programação própria. Este ano, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, a Câmara Cearense do Livro, presidida por Lucinda Marques, contou com um dos espaços mais atraentes de toda a feira. Ainda não é o ideal, mas um grande passo foi dado.
Como o cordel deve ser utilizado na escola? Quais as vantagens do cordel na sala de aula? 
Como qualquer gênero poético de estrutura fixa. Os assuntos do cordel são os mais variados e sua métrica em que predomina a redondilha maior (o verso de sete sílabas) é a mesma das cantigas de roda e dos acalantos. É preciso, no entanto, estar atento ao que é apresentado às escolas. Cordéis normativos, com finalidades pretensamente didáticas, não são os mais aconselhados, embora, em alguns casos, sejam necessários. Os poemas narrativos são sempre mais atrativos para os que não têm ainda contato com o gênero.
Folclore e sala de aula coexistem com harmonia na sua opinião?
A depender da abordagem, o folclore, conceito que envolve toda uma gama de manifestações populares e de constantes psicológicas, pode ser muito atraente, sim, mas é preciso atenção redobrada para não reproduzir estereótipos ou uma visão exótica de algo que faz parte de nosso cotidiano. O erro está em trabalhar o folclore apenas no mês de agosto. Ou imaginar que o folclore abarque apenas crenças e costumes ligados ao universo rural. Quando fazemos um sinal, como o do polegar apontando para cima ou baixo, estamos reproduzindo, instintivamente, um gesto que, nas arenas romanas, por indicava quem deveria viver ou morrer. Hoje, tem um significado ligeiramente diferente, mas, no fundo, expressa o mesmo sentimento, pois o rito antigo está implícito no gesto. Folclore não é algo exterior ao homem, portanto. É a vida em sua plenitude.
Nosso folclore é rico de temas e personagens?
Sim. E boa parte destes personagens míticos aparece numa obra essencial do mestre Luís da Câmara Cascudo, Geografia dos Mitos Brasileiros. Creio que seja o Saci o personagem mais conhecido hoje, graças, principalmente, à obra de Monteiro Lobato, que alcançou grande visibilidade em adaptações televisivas. É preciso, porém, entender que mesmo o Saci é representado de várias formas e carrega em seu DNA elementos de diferentes culturas, do gorro mágico do duende celta ao cachimbo africano. Mas, em sua origem, o personagem pertence à mitologia indígena e estava associado à Lua.
Como foi seu trabalho em Velho Chico?
Fui consultor no campo do folclore e do cordel. Por isso, também produzi poemas que eram cantados pela dupla de poetas populares da história, Egídio e Avelino, interpretados por Maciel Melo e Xangai. A minha missão, além de escrever os cordéis, era apresentar hábitos, festas, costumes, lendas e crendices que margeiam o rio São Francisco. Numa viagem que fizemos, em maio do ano passado, da foz do rio, entre Sergipe e Alagoas, a Bom Jesus da Lapa, Bahia, assistimos, na Vila Boa Esperança, em Serra do Ramalho, a uma roda de São Gonçalo, realizada com a presença de arcos manuseados pelos pares, que foi reproduzida, com esmero, em dois momentos cruciais da história. Os autores, Edmara Barbosa e Bruno Luperi, ainda incorporaram à história, por minha sugestão, o hábito de muitos idosos, ainda hoje, tecerem a própria mortalha, comprovando que a morte é aceita com naturalidade. O costume, estranho para quem não é do sertão, aparece ligado à figura emblemática da matriarca dos de Sá Ribeiro, Encarnação (a estupenda Selma Egrei), personagem que parece saída de um romance de Gabriel García Márquez, mas representa a arcaica aristocracia rural do Nordeste, que agoniza, se arrasta, mas ainda está viva.
Que outros pontos a novela destacou?
Também se fizeram presentes na trama as pegas de boi na Caatinga, rememorando a civilização do couro, e lembrando que o rio São Francisco, protagonista da história, por seu papel importante na colonização do país, já se chamou Rio dos Currais. O costume antigo de se sair em demanda do gado bravio, criado solto nos tabuleiros e reunido pelos intrépidos vaqueiros, deu origem à vaquejada moderna. Na novela, foi mostrada a pega de boi no “cipoá” (o carrasco), termo que aparece numa obra seminal do cordel, a História do Valente Sertanejo Zé Garcia, de João Melchíades Ferreira, que serviu de inspiração aos autores.
Quem são suas influências no cordel?
São muitos, mas vou citar alguns. No cordel, Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Minelvino Francisco Silva, Eneias Tavares dos Santos, Delarme Monteiro, Severino Borges Silva, Antônio Teodoro dos Santos, Manoel D’Almeida Filho, Manoel Camilo dos Santos etc. Na atualidade, me identifico com muitos autores, a exemplo de Rouxinol do Rinaré, Nezite Alencar, Klévisson Viana, Geraldo Amâncio, Arievaldo Viana, Eduardo Macedo, Suriel Ribeiro, Juracy Siqueira, Bule-Bule, Josenir Lacerda, Pedro Monteiro, Aldy Carvalho e muitos outros.
É um gênero mais distante de Sul e Sudeste, como fazer para aproximar?
Eu diria que não é tão distante assim, haja vista que o nordestino é, por natureza e necessidade, um migrante. E para onde ele foi, levou suas tradições. Daí o cordel estar presente, há décadas, em São Paulo, no Rio de Janeiro e no norte do país. No Rio Grande do Sul, por exemplo, nasceu um grande cordelista, um virtuose: Suriel Moisés Ribeiro, que, além de gostar da cultura nordestina, é admirador da obra de Ariano Suassuna. E, por dialogar com as poéticas tradicionais, por exemplo, com os pasquins e modas de viola do interior de São Paulo e as trovas gaúchas, o cordel acaba caindo no gosto das pessoas que apreciam os poemas narrativos, cantados ou não. Afinal, os campos do imaginário não aceitam cercas.
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