Cristina Taquelim dedica a sua actividade profissional à promoção
da leitura e à arte de contar. Co-organizadora do conhecido encontro
internacional «Palavras Andarilhas» – que este ano o Município de Beja e a
sua Biblioteca promoverão, uma vez mais, entre os dias 25 e 28 de Agosto –, é
também autora de livros para a infância. Tudo boas razões para uma conversa.
Continua a dar-se, quase por inteiro, à promoção da leitura no
concelho de Beja, como uma espécie de braço-armado-de-livros da Biblioteca, que
percorre escolas, instituições, lugares diversos. Ultimamente o seu trabalho
alarga-se aos mais idosos. É possível pô-los a ler, ou pelo menos a manterem-se
activos e a viverem num ambiente de literacia? Qual é o seu propósito
principal, nesse âmbito?
A minha vida profissional está profundamente marcada
pelo trabalho que desenvolvo desde 1988, no concelho de Beja, enquanto técnica
da Divisão de Bibliotecas e Museus do Município.
Tive o privilégio de integrar desde a primeira hora
a equipa do Figueira Mestre e contribuir para a estratégia que desde sempre
norteou o nosso trabalho: «Uma biblioteca ao serviço do leitor». A promoção da
leitura sempre foi a minha área de intervenção, dentro da organização,
procurando caminhos e sentidos, coordenando uma pequena equipa que se foi
qualificando para cumprir aquele que creio ser o grande desígnio das
bibliotecas: «Criar e alimentar comunidades» (não é minha a frase, mas sei que
a ouvi algures).
Em 2009, o Município lançou um novo programa de
Leitura em Meio Rural que permitiu melhorar a resposta às comunidades rurais e
integrar alguns projectos junto de novos públicos. Ampliando trabalho junto de
grupos em situação de isolamento e exclusão social, apostando numa intervenção
regular e continuada. É esse o contexto do projecto «Conversas Andarilhas» que
desde 2009 se desenvolve junto de grupos de idosos e que ganha novo fôlego, a partir
de 2012, graças a um projecto apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Esta linha de trabalho desenvolve-se na base de
encontros regulares com grupos de idosos, em que se conversa em torno de
livros, contos, mas sobretudo histórias de vida. São momentos importantes de
quebra de isolamento, de estimulação cognitiva, de valorização da memória e
identidade destes homens e mulheres. Tentamos trabalhar cruzando o oral e o
impresso, os textos da cultura popular com os da esfera literária, as memórias
do vivido com as memórias do ficcionado. As competências leitoras de cada
grupo, o seu grau de autonomia, a história de cada um dos seus elementos são os
pontos de partida. A eles junta-se a capacidade relacional de cada dinamizador.
Estamos a falar de um trabalho de relação que assume uma natureza ora mais
performativa, ora mais participada, mas sempre centrado na palavra, na imagem,
no livro. Temos quem leia romances, quem prefira o Almeida Garrett ao Mário de
Carvalho, quem leia almanaques, bíblias, páginas de poesia dos jornais locais,
quem só goste de biografias e também quem não leia nada e apenas venha para
estar à conversa.
Conversamos muito sobre o que sabemos, pensamos e
sentimos e ficamos surpreendidos com a maneira como os escritores falam do
mundo: como o Manuel da Fonseca contou, em Seara de Vento, a história do Cantinho da Ribeira,
como a Isabel Minhós Martins fala do Alqueva no livro O que vês dessa janela, como o António Mota fala
desses Outros Tempos ou dos dramas de A Casa das Bengalas. Partilham-se memórias em torno de
romances, adivinhas, adágios, trava-línguas escutados na infância.
Identificamo-nos com as descrições de Eduardo Olímpio sobre os bailes e funções
na serra. Lemos poemas e conversamos sobre as letras de fados e canções. Há
quem só venha cantar. Há quem apenas siga a sessão com os olhos por
incapacidade motora de comunicar. Cantamos muito para espantar tristezas e
medos.
A Biblioteca de Beja, com todo o seu savoir faire, Cristina, prepara-se para,
uma vez mais, pôr de pé o encontro «Palavras Andarilhas» – que se tornou uma
espécie de imagem da marca da cidade e o principal pólo português da arte de
contar e ouvir contar. Quer partilhar connosco algumas notícias frescas?
Um savoir faire, como sabem, feito de muitas
cumplicidades e da permanente procura de sentido para este projecto. Ele
reflecte o trabalho da biblioteca e sinaliza o caminho para os anos seguintes.
Contar e ouvir contar constitui o centro das Andarilhas, mas elas sublinham a
importância do trabalho com a palavra nas suas múltiplas dimensões,
oferecendo-se como um espaço de aprendizagem e troca de experiências de muitos
mediadores de leitura que trabalham nas redes de leitura portuguesas. Do
programa deste ano, que se desenvolve entre 25 e 28 de Agosto, destacaria, como
temas de fundo, as questões do maravilhoso na tradição oral, a mediação da
leitura na infância e juventude, sublinhando alguns géneros menos discutidos e
que parecem constituir-se como boas ferramentas para os mediadores: poesia e
micro-ficção. As conferências, tertúlias e oficinas cruzam-se com um novo
projecto, Festival de Contos do Mundo, que contará com a presença de um bom
painel de narradores nacionais e estrangeiros. O Jardim Público será nestes
dias o coração da cidade dos contos, mas a oferta de actividades expande-se
pelo centro histórico da cidade e freguesias rurais.
Qual continua a ser para si o principal sentido do contar e ouvir
contar?
Independentemente da idade, do contexto, das
competências e saberes, contar é a arte da relação. Posta ao serviço de uma
estratégia de promoção de leitura, ela serve o desenvolvimento da linguagem:
veja-se o papel das adivinhas no desenvolvimento de processos de antecipação
leitora, das lengalengas no desenvolvimento da consciência fonológica, dos
contos cumulativos e outros, na construção de esquemas narrativos. Contar e
ouvir contar constitui um espaço e um tempo de reflexão sobre as metáforas do
mundo e da vida, mapeando valores, emoções e afectos. Ouvir contar apoia o
desenvolvimento da escuta e da memória, sem as quais não existe aprendizagem,
bem como a organização de enunciados orais, de mecanismos expressivos.
Mas contar e ouvir contar também são apenas lazer,
fruição, colo e embalo.
É por causa desse mesmo sentido que passou à escrita, com livros
sobretudo para os mais novos, como Malaquias (RHJ, 2007), Na minha casa somos sete (Pé de Página Editores, 2009), Uma casa na Lua (Paulinas
Editora 2011), Corrupio (Editora Lê, 2013)?
Nasci numa casa de palavras e sempre escrevi muito e
irregularmente, para a gaveta e mais tarde por necessidades de profissão. As
minhas discretas incursões no mundo da edição surgiram por curiosidade e
incentivada por aqueles que me amam. Fracos motivos para editar, como vêem.
Suponho que o facto de ter uma forte relação com a oralidade e com a literatura
para a infância também tenha influenciado. Em quase tudo o que publiquei está
presente aquilo que eu sou, aquilo que penso, e fi-lo com verdade. Às vezes os
textos são apenas brincadeiras de dizer, encontro-lhes hoje muitos defeitos e
outras tantas virtudes, algumas até ao revés do cânone literário. As histórias
rimadas da minha avó são uma voz de fundo de quase todos os textos. A minha
história, também a leitora, fez o resto.
E Corrupio, o mais recente, editado no
Brasil, o que é? Diga-nos nas suas palavras.
É um pequeno álbum, ilustrado pela Elisabeth
Teixeira e publicado pela editora brasileira Lê, que contou com o apoio da
DGALB. Uma história sobre o desejo e onde ele nos leva. Uma metáfora sobre a
descoberta da vida, sobre o amor. Está «prescrito» – ironizo – para
pré-leitores, mas a leitura em voz alta apenas do texto pode oferecer uma
recepção interessante junto de outros públicos.
Em sua opinião, este mundo perigoso, socialmente injusto e desigual, em que estamos a viver, reclama o contar e o ouvir contar?
O mundo nunca foi justo e está cada vez pior! – dizia no outro dia, do
alto dos seus 90 anos, uma leitora de biografias. Os contos dão-lhe razão.
Veja-se os textos do património imaterial,
Em sua opinião, este mundo perigoso, socialmente injusto e desigual, em que estamos a viver, reclama o contar e o ouvir contar?