sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Dona Saudade - Cláudia Pessoa

Já publiquei essa linda história ano passado.
Um ano passou desde o último parabéns na UTI da Santa Casa de São Paulo.
Ela, minha avó, estava bem melhor. Lúcida, sem dor, respondendo a todos os estímulos, emocionada por ouvir as vozes dos filhos e netos ao telefone, liguei pra todos para que ela sentisse a presença de cada um dos seus entes mais queridos. Eu, me encontrava numa mistura de sentimentos. Era medo, tristeza, confiança, dúvidas, gratidão, súplicas, acordos com Deus e no meio de tudo ela. Guerreira, forte, passando por tudo aquilo com toda a dignidade que lhe era possível. Dez dias depois ela fez a última viagem. Que saudade!!! E para momentos de saudades, nada melhor que uma boa história, quem sabe alivia...

...


Desde muito pequeno, Fernando sempre foi muito grande.
Ele crescia mais pra dentro do que pra fora. Ele crescia pequenininho, já aprendendo coisas de adulto, mas sabendo virar cada vez mais criança.
Não demorou muito para Fernando perceber que as perguntas difíceis que fazia quase nunca os mais velhos sabiam responder. E das perguntas mais complicadas, nem as crianças sabiam as respostas.
Havia uma fadinha preciosa que andava sempre ao lado de Fernando. Ela muitas vezes o ajudava. Tinha respostas bonitas pra tudo. E, mesmo que não tirasse as dúvidas de Fernando, e mesmo que não matasse sua curiosidade, pintava de cores bem vivas aquele pedaço branco que a pergunta deixava no ar para ser colorido pela resposta.
Era uma fadinha bonita pra danar!
Um dia, a fadinha desfadou.
Acho que ela quis deixar uma pergunta bem complicada sem resposta: a pergunta mais embrulhada de todas. Parecia que a fadinha sabia que só Fernando descobriria a resposta. E sabia também que se ela estivesse por perto, ele esqueceria de procurar esta resposta dentro de si mesmo. Fernando iria logo perguntar a ela e esqueceria que carregava a imensa sabedoria que só criança muito criança, crescida pra dentro, tem.
Fernando ficou muito aborrecido com o sumiço da fadinha.
Começou a ter que crescer pra valer. Mais do que nunca ele precisava da fadinha, mas ela tinha desaparecido mesmo.
"Pra onde vão as pessoas que somem da nossa frente?"
Como ter certeza de que o amigo está na cas dele, a prima no balé, o irmão no futebol e a avó no céu!?
Não estamos vendo!
A única coisa de que não tinha dúvida, era de que quando as pessoas que amava desapareciam, às vezes até por uma gigantesca horinha, ele encontrava Dona Saudade.
Dona Saudade tinha mania de persegui-lo. Sempre, quase sempre, em momentos ruins.
Ela roubava todo mundo e sentava no colo de Fernando, com aquele peso pesado, para ele ter certeza de que ela estava ali, para ele sentir ainda mais sua presença.
Dona Saudade era enorme, feia, bruta e ladra. Ela irritava Fernando e machucava seu colo.
Quando ela aparecia, Fernando só pensava na fadinha... Onde estaria? Que resposta daria quando ele perguntasse como fazer pra destruir a danada da Dona Saudade?
Então, quando Dona Saudade aparecia, Fernando saia correndo, empurrava-a de seu colo, se escondia e tentava não olhar pra sua cara.
Tinha muita raiva daquela ladra de pessoas, que insistia em persegui-lo.
Um dia, Fernando estava se sentindo forte, muito forte. Cheio de alegria, cheio de coragem, cheio de amor. Nesse dia, resolveu enfrentar Dona Saudade.
Deitou em sua cama, apagou a luz, fechou os olhos, tirou o cobertor e ficou quietinho, esperando.
Não demorou muito e sentiu um peso pesado sentado bem no meio do peito. Abriu rapidinho os olhos. Abriu também o coração e convidou Dona Saudade, sem nada dizer, pra entrar.
Dona Saudade, diante do convite de Fernando, ficou reticente.
O que estaria havendo?! Isso nunca havia acontecido com ela antes. Sempre que chegava, todo mundo a expulsava. Achou estranho, mas foi se aconchegando, devagarzinho.
Dona Saudade estava desconfiadíssima. Discreta, bem mais magra, resolveu não assustar o menino.
Aos pouquinhos, quando percebeu que Fernando não ia fugir, foi trazendo todo mundo que havia deixado no Céu-Lar, o lugar onde morava, e lentamente foi guardando tudo dentro dela.
Cada pessoa, llugar ou coisa que ia trazendo pra dentro de si, ia fazendo Dona Saudade engordar tudo de novo. Assim, ela foi voltando a seu peso normal. Ela queria que o menino a conhecesse por inteira, grande do jeito que ela era. Não gostava de disfarçar.
Fernando foi respirando cada vez mais rápido, e deixando Dona Saudade entrar.
Até que ela entrou inteirinha.
Fernando, quando olhou pra dentro de si, viu tudo. Entendeu tudo.
Dona Saudade de fato carregava todo mundo.
Dona Saudade de fato, apesar de todo seu peso danado de pesado, coube dentro do seu corpinho pequenininho. Como pôde?
Dona Saudade de fato queria ser sua amiga. E seria.
Fernando ficou enorme.
Uma criança cheia, tão cheia que não cabia mais dentro de si.
Lá dentro de Dona Saudade, que estava dentro de Fernando, estava a fadinha com uma cara feliz. Com uma cara de abraço apertado.
Lá dentro de Dona Saudade, que estava dentro de Fernando, estava o amigo, a prima, o irmão, a avó...
Lá estavam tantos outros!
Dona Saudade finalmente ficou feliz pela primeira vez em sua vida.
Não era fácil vir diariamente do planeta Céu-Lar, carregando tanta gente, e terminar sendo rejeitada por todos. Ninguém abria a porta pra ela. Era por isso que doía. Porque doía nela.
Fernando encontrou a resposta e acolheu Dona Saudade.
Desde então, vendo principalmente como ela esticava e encolhia, ele virou seu melhor amigo.
Fernando carregava Saudade, que de Dona não tinha nada, pra todos os lugares que ia. E com ela, carregava todo mundo que queria.
Ela o acompanhava e ocupava todos os cantos. Até os mais silenciosos.
Quando Fernando queria estar pertinho de alguém, se Saudade não estivesse por perto bastava chamá-la que chegava rapidinho, com todo mundo a tiracolo.
Fernando não cansava de olhá-la.
Também, era bonita demais: corpinho rechonchudo de nuvem colorida, duas estrelas incrustadas no rosto, que viam tudo, até o invisível.
Dona Saudade também tinha um sorriso solar, que iluminava e abrigava o mundo inteiro!
Saudade, certo dia, contou um segredo muito secreto para o seu novo e grande amigo. Um segredo que, aliás, nem precisava ter contado: ele logo percebeu.
Saudade, quando acolhida, fica levinha, levinha, com peso de nuvem sem lágrima: com peso, tamanho e aconchego de céu sem chuva!

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